O relançamento/apresentação do livro Tesoura para Todas, aconteceu no último dia 11 de outubro. O objetivo foi apresentar os três primeiros textos e contextualizar a construção do livro para a partir disso iniciar uma roda de diálogos sobre os temas apresentados e as vivências das pessoas presentes.
Contamos com a presença de companheiras de Belo Horizonte e Brasília, que trouxeram relatos sobre abusos e agressões machistas, como o caso do 1º Queer Fest Brasília. Também se fizeram presentes algumas companheiras da Convenção Histérica, que trouxeram e distribuíram entre os presentes, uma edição, diagramada em formato livreto, da carta/denuncia contra o ex-integrante do Laboratório de Mídias Autônomas e seus cúmplices, companheiros de coletivo.
O primeiro texto apresentado foi o ‘Feminismo não é um assunto de mulheres’. O manifesto, ressalta a ineficiência dos grupos políticos em tratar coletivamente casos de machismo. Levar este debate não é uma obrigação, somente, das mulheres, mas uma iniciativa que deve ser individual, coletiva e partir de TODXS. Apesar de sabermos que são as oprimidas que levantam e problematizam estas questões inicialmente, o desenrolar de cada caso que vivenciamos, ou do qual temos notícia, denota ser falida a estratégia “vamos deixar mulheres e bixas discutirem o machismo.” Na prática, quando se joga para segundo plano estas questões, cria-se um ambiente de conforto para a manutenção dos privilégios masculinos e não se estimula a desconstrução de práticas machistas cotidianas na vida de todxs. O resultado é a reprodução pública e privada de violências e a legitimação da opressão contra as mulheres. Um papo a passo perigoso, que vimos se reproduzir cotidianamente em vários lugares e mais recentemente se repetiu na cidade.
Na exposição do segundo texto, ‘Rompendo Imaginários: Maltratadores politicamente corretos’, foi enfatizada a sofisticação das praticas machistas em aperfeiçoar contextos de violência e as estratégias de invalidar as denuncias das vítimas para assegurar aos homens a condição de agressores e perpetuar os cenários das violências.
Foi trazido que firmeza, impositividade, seriedade, frieza – no sentido não passional – e lucidez – no sentido não histérico – são elementos presentes na ideia de masculinidade e não por acaso, características que constroem confiança nas pessoas, além de serem comportamentos ensinados, praticados e cobrados por homens. Temos visto que quem não se utiliza desses artifícios, supostamente racionais e totalmente masculinos, está pronta para ser desacreditada. A insegurança evidente da vítima, a falta de conforto para relatar detalhadamente as agressões, a instabilidade emocional são comumente usados como argumentos para não levar a sério os relatos e denuncias das vítimas. A cobrança de determinadas posturas e a não preocupação em ter a cautela necessária para confortar a vítima, resulta numa repetição da violência, proteção do agressor e impossibilidade de problematização destas questões.
A pessoa que apresentou o texto ressaltou que a identidade masculina, acostumada a exercer superioridade, decidir situações e impor suas vontades, é o elemento propulsor da execução da violência sexista, fazendo com que os homens em conformidade com gênero e sexualidade imposta pelo heterocapitalismo, sejam potenciais abusadores, agressores e violentadores. Perceber a condição da violência associada à identidade masculina, acaba com o mito do agressor politicamente incorreto e com a proteção dos abusadores que não apresentam na vida pública, comportamentos brutos, grossos e estúpidos. Surpreender-se com qualquer homem, por mais sensível que ele se apresente, ao tornar explícito seu envolvimento em agressões, é uma ingenuidade e uma falta de compreensão estrutural sobre as dinâmicas construtoras da violência machista.
Por fim, ‘Por que temos sempre a sensação de que partimos do zero’, trouxe uma análise sobre a falta de prioridade em tratar os casos de violência machista nos agrupamentos políticos e na sociedade de um modo geral. E incrível como sempre que ocorre um caso de violência próximo de algumas pessoas sensíveis a compreender tais violências ou dentro de coletivos, a questão e tratada como se tais casos nunca tivessem ocorrido antes. A ideia é que sempre tem que haver, por parte das mulheres e bichas próximas aos casos e envolvidxs, paciência e disponibilidade para pedagogicamente explicar o que é violência contra as mulheres, porque isso ocorre e apontar o porque os caras reproduzem machismos no cotidiano. Um trabalho que parece não ter continuidade ou não e absorvido pelas pessoas e precisa ser constantemente refeito, dando a sensação que sempre partimos do zero quando um novo caso de violência ocorre. O que é por demais cansativo, desestimulante e opressor. As pessoas sensíveis e comprometidas de alguma forma com esse olhar, precisam estar o tempo inteiro dispostas e disponíveis a explicar, ajudar e resolver os conflitos. Percebe-se pouca disposição da sociedade e de alguns grupos políticos para tratar essas questões como prioridades e realidades palpáveis.
No debate, vários temas foram pautados, como a problematização da heterossexualidade (relação entre pessoas de sexos opostos) como manobra para consolidação dos papeis de gênero e submissão feminina, onde o homem da relação, em certa medida, sempre oprime a companheira. A dependência e a dificuldade de rompimento com agressores e cúmplices graças a uma falta de confiança feminina em construir e protagonizar espaços e fazeres políticos que priorizem ambientes de vivência seguros no presente e não as possíveis contribuições que os abusadores podem dar em organizações futuras. A afetividade como aprisionamento e silenciamento de comportamentos violentos e a necessidade de construir uma autoestima em corpos femininos que desperte um senso crítico e localize as consequências dos sentimentos cultivados aos violentadores e seus cúmplices.
O quanto é complexo e doloroso para uma companheira perceber as praticas machistas de seu companheiro e questioná-las, sabendo que dificilmente ele compreenderá realmente a sua condição privilegiada no mundo. Como lidar com isso? Esse foi o ápice da nossa discussão e nos fez perceber que agimos perante a esses problemas de diferentes formas e que o importante é respeitarmos os nossos limites e não darmos passos maiores que as nossas pernas.
Foi a primeira atividade promovida pela ARCA para discussão e trocas de práticas antisexistas em uma perspectiva libertária. Tem ficado cada dia mais clara a importância de promover estes espaços de fortalecimento, para que não sejamos pegas de surpresa e fiquemos perdidas ao sabermos de um caso de agressão e principalmente para criarmos cada vez mais espaços de acolhimento, empoderamento, questionamento e construção coletiva entre as mulheres e bichas. Percebemos que muito do que nos fragiliza é estarmos sós e não encontrarmos guarida e apoio quando nos deparamos com as violências cotidianas.
Construir sororidade, criar estratégias de combate à opressão da cultura machista arraigada em nossas práticas cotidianas e estimular o acolhimento entre as mulheres, bichas e afeminadas é o nosso maior compromisso pessoal, coletivo e politico.