A Índia é apenas um dos muitos lugares do mundo onde o patriarcado conseguiu, de forma peculiar, trazer os dogmas religiosos que engendrou, como artifício para estruturar com a sociedade, violentando mulheres.
O rígido sistema de divisão de castas resulta num brutal feminicídio e numa castração absoluta de direitos e liberdade das mulheres. Seus destinos já estão traçados: abusos sexuais, estupros, abortos e abandonos de bebês apenas por serem meninas, mutilações e agressões físicas.
Muitas famílias indianas, mesmo as mais ricas, veem o nascimento de uma menina como um desperdício, um problema financeiro. Elas representam gastos com educação, sistemas de repressão, alimentação e, para casar uma filha, é preciso juntar um grande dote, ou seja, dar presentes para a família do macho.
A misoginia se intensifica em casos que mulheres esperam filhas gêmeas: as práticas mais comuns que as famílias exercem sobre as mulheres são a pressão para abortar, a tortura e a interrupção da alimentação.
A pediatra Mitu Khurana é uma das poucas ativistas que usam sua própria história como exemplo para mostrar como esse costume está alterando a balança de gênero no país. Quando Mitu recebeu a notícia do médico de que estava grávida de gêmeas, sua felicidade foi imensa. Contudo, ao chegar em casa, seu marido e a família dele estavam de luto e disseram que não poderiam criar duas meninas. Apesar da pressão, Mitu não terminou a gravidez e deixou o marido, alegando abuso por parte dele e dos sogros. Com o apoio de seus pais, Mitu embarcou em uma luta (também no campo legal) contra esse tipo de atitude, segundo ela “Na Índia, esses abortos se tornam uma indústria milionária”.
É uma realidade extremamente insegura, violenta e brutal que impulsiona a necessidade de uma resistência e um combate à altura, que traga contundência e eficácia para desmistificar a fragilidade e violabilidade associada ao corpo das mulheres. De fato, é preciso ressaltar a importância dos trabalhos que visam conscientizar, ilustrar e propagar a responsabilidade masculina no contexto de violência à mulher, mas ao mesmo tempo, é urgente deixar claro, que a força motriz que engendra a violência não é a falta de esclarecimento ou ignorância masculina e sim a relação desigual de poder que homens detém na sociedade e usam como forma de oprimir mulheres e demais dissidentes da normativa masculina. O que muitas mulheres indianas se convenceram é de que as violências misóginas só chegarão ao fim a partir da organização de mulheres numa combatividade efetiva e direta contra as ameaças que tange seus corpos.
O vídeo abaixo mostra um recrutamento combativo feminino para punição de homens que tentaram estuprar mulheres. No ocidente, cenas como esta chocam a racionalidade patriarcal e os olhos cegos à dura realidade misógina, sob a justificativa piegas de que violência gera mais violência.
“Se retirarmos esta filosofia da arena política impessoal e a colocarmos num contexto mais real, a não violência implica na crença de que é imoral que uma mulher se defenda de um agressor ou que aprenda autodefesa. A não violência assume que para uma mulher maltratada seria melhor partir, ao invés de se mobilizar em um grupo de mulheres e dar uma surra no marido agressor, escurraçando-o de casa1. A não violência afirma que é melhor ser estuprada do que tirar uma caneta do bolso e afundá-la na jugular do agressor (porque fazê-lo seria supostamente alimentar um ciclo de violência e fomentar futuras violações). O pacifismo simplesmente não tem ressonância nas realidades diárias das pessoas, a menos que estas pessoas vivam em um extravagante mar de tranquilidade, em que toda forma de violência civil, reativa e pandêmica, tenha sido expulsa pela violência sistêmica menos visível da polícia e das forças militares.”
Peter Geoderloos – Como a não violência é patriarcal, capítulo 4 do livro Como a não violência protege o Estado.
Na cidade de Bundelkhand, no estado de Uttar Pradesh, norte da Índia, mais de 10.000 mulheres entre 22 e 50 anos compõe o Gulabi Gang. As mulheres da gangue rosa vão às casas dos maridos violentos com varas de bambu, ameaçando-os a menos que parem de abusar de suas esposas. A maioria das mulheres da gang são dalits (considerada a casta mais baixa indiana, ou “os intocáveis”) e não por acaso, a casta que contém o maior número de mulheres abusadas, machucadas e assassinadas.
Em 2008, elas invadiram um escritório da companhia energética do distrito de Banda e obrigaram funcionários a restabelecer a energia que tinha sido cortada para extrair propina e subornos. Elas também brigaram pelo fim do casamento infantil e pela alfabetização das mulheres.
E porque é preciso ter uma “gangue” para ajudar mulheres em Bundelkhand? Essa aérea superpovoada é palco de guerras diárias contra uma sistema político corrupto, terras inférteis e o patriarcal sistema da hierarquia de castas.
Em sua curta existência, o grupo já enfrenta acusações de tumultos, ataque aos funcionários do governo, reunião ilegal e obstrução da justiça. Meses atrás, após o estupro de uma mulher dalit por um homem de uma casta superior, a polícia sequer registrou o caso. Moradores que protestavam foram presos. A gangue buscou justiça e invadiu a delegacia de polícia, exigindo que os aldeões fossem liberados e que fosse registrada uma queixa contra o agressor. Quando o policial se recusou a cumprir tal pedido, a quadrilha atacou a delegacia com as varas de bambu e um inquérito contra o criminoso está em andamento agora.
O Gulabi Gang é um exemplo de união e solidariedade entre mulheres e tem muito a oferecer ao contexto de violência vivenciado por mulheres, lésbicas, bichas afeminadas e pessoas trans no Brasil. A forma de ativismo do Gulabi Gang é ação direta, que se empenha não apenas em questionar as condições da mulher, como também em oferecer suporte àquelas que se encontram em situações de risco. Esses esforços nos acordam para a realidade de violência que atinge milhares de mulheres diariamente, um tipo de experiência insubstituível, cuja lacuna não pode ser preenchida por nenhum estudo acadêmico.
Notas
1 – Esta última estratégia tem sido aplicada com sucesso em muitas sociedades antiautoritárias ao longo da história, incluindo a Igbo, na Nigéria, hoje. Por exemplo, ver Judith Van Allen, “‘Sitting on a Man’, Colonialism and the Lost Political Institutions of Igbo Women”, Canadian Journal of African Studies, v. 2, 1972, p. 211-219.