Diante da repercussão da posição da ARCA sobre a chegada da rede internacional de restaurantes Hooters e da incompreensão por parte de algumas pessoas do que isso representa, resolvemos abordar alguns pontos do debate, só que dessa vez, de forma mais pedagógica, levando em consideração os argumentos mais repetitivos desta historia toda.
Nosso objetivo é que a discussão continue a fluir, de forma a aprofundar a compreensão sobre a lógica violenta na qual se estruturam as nossas cidades. O texto objetivo e pontual de outrora com certeza trouxe muitos desconfortos, não apenas por uma possível falta de habilidade nossa, mas também pela profunda naturalização do machismo presente na sociedade e pelo insistente reforço em querer assegurar, de acordo com a lógica capitalista, o corpo da mulher enquanto mercadoria.
Solicitamos aos leitores maior abertura para ler o que se segue. A missão de se compreender uma mensagem depende em muito da boa vontade de quem a lê.
1 – O que tudo isso tem a ver com a “revitalização da cidade” e porque o Estado tem sim responsabilidade sobre isso? Além de acharmos, por si só, a existência do restaurante extremamente problemática, a unidade da Hooters na cidade é um empreendimento dentro do Projeto Novo Recife. Cremos que não é só apenas as torres do Consórcio que compõe o projeto, afinal o empreendimento que revitaliza a zona portuária da cidade também usa a alcunha ‘Novo Recife’. O que estamos querendo dizer é que o projeto de desenvolvimento urbano está voltado não só para um poder de consumo mais elevado, ligado ao mercado turístico, mas é composto por empreendimentos que exploram sexualmente a imagem feminina. Minimamente, podemos afirmar que um projeto que prevê um tipo de estabelecimento como o Hooters não considera uma realidade de violência sexista concreta na cidade e pior, com base em argumentos de liberdade – de perspectiva liberal – naturaliza a objetificação do corpo do mulher. Você não acha no mínimo complicado o Estado numa Parceria Público/Privada permitir que uma rede como a Hooters se abulete no meio do Recife Antigo, um dos nossos cartões postais, e em vários aspectos contribua para a reprodução da violência sexista? E o papel do estado em coibir essas violências onde fica? Ou não podemos responsabilizar o Estado por isso?
Um empreendimento de requalificação urbana que admite em um modelo de negócio que vende e se sustenta com a exploração de trajes sexualizados, sofistica o consumo sexual do corpo feminino. É uma forma de normalizar e atenuar a prática abusiva do assédio e fazer vista grossa para os comportamentos e hábitos masculinos desrespeitosos e violentos. No processo seletivo, as Garotas Hooters são treinadas a fugirem de cantadas e como falamos acima, são obrigadas a assinar um termo afirmando e reconhecendo que podem sofrer abusos. Desta forma, ao admitir este tipo de negócio de alto consumo, num grande projeto de estruturação urbana, o poder público colabora para construção de ambientes não seguros para mulheres, permite a expansão do consumo elitista de mulheres como entretenimento masculino, – o que representa uma estratégia de normalização – além de impulsionar a cultura machista na cidade, algo que definitivamente reverberará e trará drásticas consequências às todas as mulheres e afeminadas da sociedade. Isto representará um imenso retrocesso. No mundo inteiro, meninas e mulheres sofrem com assédio, machismo e violência nos espaços públicos. O medo, muitas vezes, impede que elas façam algum trajeto, limitando seu ir e vir na cidade. Isso acontece porque o espaço urbano não é planejado pensando nas mulheres e afeminadas, e o Novo Recife está ai para provar isso!
2 – Uma busca no google (ou no DuckDuckGo o buscador que não vende sua vida a empresas.) com o nome da franquia Hooters e o site da rede são bem claros, a proposta não é a venda de comidas, mas das mulheres em forma de produto. É ingênuo acreditar que se trata unicamente de um restaurante comum, que “famílias frequentam e isso não tem nada de mais” ou que “é um bar como outro qualquer”. Olhem os detalhes no site e me digam se realmente não há problemas em uma franquia internacional que expõe como propaganda mulheres semi nuas envoltas em lutas de UFC, jogos de beisebol e costelas suínas, te dizendo: “ao chegar no nosso bar você não só vai ver a sua luta ou o jogo do seu time, mas ser servido por belas mulheres com seios volumosos a mostra” se você não enxergou o problema é porque provavelmente você se satisfaz, tira vantagem com esta exploração sexual ou por alguma espécie de cegueira desconhecida (rs). Realmente se faz necessário isso pra vender cebola empanada e chopp gelado? Nós acreditamos que isto não faz nenhum sentido, mas sabe porque o senso comum não se dá conta dessa bizarrice? Porque a sua, a nossa consciência, já esta habituada a ver mulheres sendo vendidas como partes integrantes de um kit disponível aos homens – mulheres, bebidas, muita carne vermelha e futebol e isso é tão natural que as famílias não veem problemas em levar seus filhos para esses espaços, é tudo normal.
A hipersexualização das mulheres está nos outdoors, nas revistas, nos programas de TV, nos catálogos de moda, nas publicidades e em casas noturnas, isto não representa um problema em nossa sociedade, pelo contrario, é necessário para que as mulheres tenham algum valor, pois esta é uma das formas que a sociedade nos oferece para sermos úteis no mundo. Pela hipersexualizacao dos corpos femininos as mulheres e pessoas afeminadas são impelidas a vender o que a sociedade consome: seus corpos. Se você inverter a lógica vai perceber que aos homens e seres masculinos são reservadas mais possibilidades de emprego que não envolvam seus corpos e suas sexualidades, mas para as mulheres e seres afeminados, vender sua força de trabalho sexual é sempre uma alternativa. A grande questão aqui é que as mulheres e todxs xs individuxs podem e devem obter o seu sustento da melhor forma que optar, mas existe uma lógica que faz com que alguns corpos afeminados sejam vendáveis e outros bem menos. O que os defensores da Hooters não percebem é o quanto essa naturalização da mulher enquanto objeto sexual, sexo frágil e muitas vezes como servas dos homens tem consequências desastrosas, como a violência física, exploração sexual e o tráfico de mulheres. Não acreditamos em objetificação sexual light, ou exploração sexual leve, menos danosa e mascarada como a Hooters faz nos seus restaurantes.
3 – Aí você me diz que as mulheres “estão ali porque querem e gostam do que fazem”. Em um ponto concordamos, de fato xs indivíduxs possuem uma agência que xs motiva a agir de um jeito e não de outro, e que (até onde sabemos) os empregadores não colocam facas nos pescoços das mulheres e as obrigam a trabalhar lá. Mas existe uma outra questão que impede o que você chama de “liberdade individual” e “livre iniciativa”, cremos que ela é uma ilusão. Ao dar uma pequena observada em nossa sociedade e nas nossas próprias atuações dentro dela percebemos que a grande maioria de nós, principalmente as pessoas de classes mais populares, já trabalharam ou trabalham em empregos que não gostam e não lhes satisfazem e que o imperativo financeiro é condicionante para “passar um tempo, até me organizar”, muitas vezes este tempo é uma eternidade. Dificilmente é possível acreditar que uma pessoa se sinta realizada com o tipo de trabalho que faz no McDonald’s ou do Subway, apesar de sabermos que existe uma pequena exceção. A vida capitalista faz com que o emprego seja uma necessidade, para pagar as contas, para comer, para morar bem. A estabilidade do emprego sempre se coloca a frente das necessidades subjetivas, dos prazeres, dos projetos políticos e muitas vezes das aptidões pessoais. Não é por acaso que a depressão é uma das doenças que mais afastam trabalhadores das empresas atualmente, também não é por acaso o alto índice de pessoas com depressão nas cidades. O Estabelecimento que se utiliza da “liberdade das mulheres de estarem lá porque querem” para vendê-las junto com pedaços de animais mortos, acaba por contribuir para que essas violências aconteçam. As Garotas Hooters são obrigadas a “reconhecer e afirmar” que o conceito do bar é baseado no apelo sexual feminino e que no ambiente de trabalho podem ocorrer situações desagradáveis de desrespeito e assédios. Me diga você o que pode acontecer com essas mulheres que estão lá trabalhando em um dia de luta de UFC, madrugada a fora quando a maioria masculina embriagada resolver “tirar uma onda” no estabelecimento… Será que elas serão culpabilizadas pelo desrespeito que podem sofrer? Por ter assinado um termo onde se declaram cientes disso? Pense com carinho, sem dizer a primeira coisa que a sua mente reproduz, com um pouco de cuidado você se dará conta do que pode acontecer com elas.
4 – Pessoas que fazem o uso do termo liberdade, para justificar o tipo de emprego oferecido pela Hooters, deviam reconhecer que homens são proibidos de serem garçons neste bar, que além disso muitas mulheres que fogem de um padrão de beleza objetificado também são proibidas de trabalhar lá. Na realidade a Hooters tem um manual severo de conduta e impõe na cabeça das funcionárias que elas precisam realizar atividades extra oficiais, para assegurar o emprego. Um estabelecimento que tem como hábito apenas selecionar ‘gostosas’ desrespeita quem não atende os padrões de beleza machistas. Quantos destes homens que defendem a Hooters perderam oportunidades de empregos por não serem bonitos ou gostosos? – sim, porque grande parte deles são horrorosos e nem um pouco gostosos por sinal (rs. rsrsrs). Se o serviço é de atendimento, a mulher não tem obrigação de ser gostosa, muito menos de tentar manter ou atingir um padrão de beleza machista para conseguir um emprego. Vocês acham realmente que isto tem alguma coisa a ver com liberdade?
5 – Os defensores da Hooters parecem não saber que a rede tem várias pedras legais em seu calcanhar, em 1997 a Hooters foi condenada a pagar 3,75 milhões por ter discriminado e negado emprego a três homens nos Estados Unidos, em 2004 várias mulheres entraram com ação na justiça estadunidense por ter sidos filmadas por câmeras escondidas enquanto se despiam. Para os amantes do direito, o acesso ao emprego baseado por motivos de sexo, cor, estado civil, é proibido pela Constituição Brasileira. E o que isso diz sobre a rede de restaurantes? Bem, nos diga você!
6 – Fundamentalistas religiosas ou moralistas é um termo que não nos cabe. Não estamos indo contra os shortinhos que as Garotas Hooters vestem, muito menos contra seus decotes, estamos indo contra mulheres terem que vestir shortinhos e decotes para serem o principal produto de atração de um restaurante, sim porque elas deixam de ser Anas, Marias e Claúdias, para serem um objeto sexual. Defendemos o direito das mulheres andarem como queiram, com burca, com shorts, topless, de calças, sem camisa e até nuas, apenas somos contra alguém lucrar pela forma que uma mulher deseja se trajar ou imponha um traje para o trabalho que a transforme num produto, isto se chama coisificação e objetificação do corpo feminino e é exatamente isto o que transforma mulheres em mercadoria. Também lutamos pela liberdade sexual e temos certeza que sem ela é impossível existir corpos livres. Nos impressionam ver os homens que defendem a Hooters falar em liberdade das mulheres. Atualmente, as mulheres não tem liberdade para interromper uma gravidez indesejada, queremos saber o que eles estão fazendo para garantir as liberdades femininas que não cruzam com seus desejos sexuais. A nossa questão é com o sistema capitalista que é machista, racista e que se apropria dos corpos das mulheres e afeminadas para lucrar em cima deles. Seja para fins sexuais, seja para limpar o banheiro ou fazer um almoço, o sistema se apropria dos nossos corpos para servir uma classe dominante, branca, rica e heterossexual.
Nossa tentativa de trazer estes tópicos se faz com o objetivo de contribuir para um maior aprofundamento do debate, tão precarizado pela naturalização do senso comum machista. Nossa posição é norteada por princípios anticapitalistas e anti-autoritários, por isso cremos na interseccionalidade das lutas como algo elementar para a construção de uma realidade plural, diversa e justa. Outros pontos que abordamos no texto original como como tráfico de mulheres, exploração de animais não humanos, projeto de requalificação protagonizado pelo monopólio de grupos corporativos, estratégias de pressão e a subordinação mercantil de pessoas pelo advento do emprego capitalista, se faz neste momento, sem oportunidade de análise, haja visto a profunda convicção dos defensores da Hooters com os ideais hegemônicos antropocêntricos, capitalistas e machistas.
Admitimos, sem dúvidas, uma possível ‘falha pedagógica’ na objetividade do texto e na incisividade combativa. Contudo, gostaríamos de dividir esta responsabilidade, com nossxs parceirxss de luta e grupos que publicizam uma postura crítica ao capitalismo, mesmo com todas suas contradições. Novas visões de mundo em relação ao gênero, etnia, classe, sexo, cidades, agricultura, animais não humanos, meio ambiente e transporte não se consolidarão com esforço “somente das feministas”. A construção de uma realidade plural passa por vários campos. Desta forma, assumir, posicionar-se e ter postura contundente contra iniciativas exploratórias que se baseiam na submissão, se faz uma mais que uma responsabilidade, é um compromisso social.
ARCA – Articulação Combativa Antisexista