A ARCA enquanto articulação combativa de perspectiva feminista repudia as inúmeras violências cometidas pelo Estado e por alguns trabalhadores ambulantes contra todas as mulheres e dissidentes sexuais na última edição da Marcha das Vadias. Acreditamos que o acontecido evidencia claramente a localização política das organizações e individualidades violentadores bem como seu comprometimento e cumplicidade com o regime sexista e machista que impera na sociedade. Segue a NOTA DE REPÚDIO divulgada pela organização da Marcha das Vadias Recife:
O Coletivo Marcha das Vadias Recife é um movimento autônomo e apartidário que, articulado com outros coletivos e organizações feministas, há cinco anos, coloca a Marcha das Vadias nas ruas.
A cada ano, com muito suor e dedicação, nos empenhamos para que o evento aconteça como uma importante representação de resistência ao machismo, um grito contra toda forma de violência que vitima mulheres cotidianamente. Buscamos contribuir para a auto-organização coletiva, descobertas e fortalecimento pessoal e político daquelas que sempre são colocadas num lugar de subjugação pelo sistema patriarcal: mulheres negras e brancas, cis e trans, lésbicas e bissexuais.
Lutamos contra o poder do patriarcado que impõe como seu território nossos corpos e escolhas. A Marcha das Vadias Recife é, portanto, onde criticamente entoamos em coro a autonomia dos nossos corpos, a tomada das nossas vidas pelos direitos que nos cabem e pelos desejos que nos movem.
O fortalecimento coletivo e individual das mulheres para a destruição das práticas machistas provoca, inevitavelmente, a reação dos opressores. Tanto pode levar ao abrandamento gradual e inexistência das opressões, assim como pode inflamar a fúria violenta daqueles que sentem seus privilégios – de macho – ameaçados. Uma rápida análise do contexto político indica uma resposta cada vez mais incisiva do conservadorismo. Forças não serão poupadas na tentativa de reinstaurar o nosso silêncio.
Nesse sentido, a Marcha sempre foi alvo de variadas formas de agressão e tentativas de controle, especialmente contra as mulheres trans. No entanto, esse ano o embate foi ainda mais direto, colocando nossa integridade em alto risco desde a concentração até o desfecho da caminhada. É importante tirarmos uma lição positiva destes episódios, que também servem para ilustrar a violência sofrida diariamente por nós, mulheres. É também mais uma oportunidade de constatar como o enfrentamento traz consigo sentimentos explosivos que movem mais impulsos de resistência. É possível perceber essa questão, por exemplo, a partir da maior participação de mulheres trans, e das muitas jovens que fizeram do momento, o seu contato inicial com uma irmandade de luta e apoio.
Assim, a máxima “quando estamos juntas nossa força é maior” agora carrega ainda mais significados. Vemos que as provocações trazidas por nossa simples existência na rua levam à instabilidade do conservadorismo opressor e, principalmente, determinam o crescimento do nosso empoderamento. Existimos e resistimos. Esse ano mais uma vez, transformamos nossa dor e medo em enfrentamento e resistência.
Ao passo em que fomos nos reunindo na praça do Derby, as garras da tirania machista foram se mostrando. No primeiro momento de agressão, uma companheira trans foi impedida de ir ao banheiro feminino por um funcionário da EMLURB. . Muitas de nós questionamos a atitude, no entanto, o funcionário se negou ao diálogo, fechou os dois banheiros e foi embora. Impedindo, inclusive, que mulheres grávidas e crianças tivessem acesso a um serviço que é público.
Quando nos movemos para a denúncia junto aos policiais que patrulhavam a área, o “diálogo” foi encerrado abusivamente com argumentos desrespeitosos aos direitos das mulheres trans, ignorando a legitimidade do seu nome social – o que configura um caso típico de transfobia. A violência sofrida pela nossa companheira só aumentou a nossa indignação e o desejo de tomar as ruas, para reafirmarmos que ali também é nosso lugar.
Havia, entre nós, fortes sentimentos de resistência que confluíam num movimento, tendo o apoio mutuo como força motriz. A força das mulheres nessa Marcha residia num sentimento de empoderamento latente entre nós. Era possível sentir, em cada uma, que por mais que a dor da outra não seja a minha dor, nós nos acolheremos umas as outras, transformando o sentimento de cada uma, em vivência coletiva de enfrentamento, acolhimento e sororidade.
A trilha de agressões teve continuidade enquanto marchávamos. As piadas, os deboches, os xingamentos mais odiosos e humilhantes, nada diferente dos outros anos e de todos os dias. No entanto, se instaurou definitivamente a violência quando um trabalhador informal da Avenida Conde da Boa Vista se sentiu no direito de invadir espaços e corpos. Em postura de deboche às mulheres, exibiu seu peito e barriga, lançando piadas sem escrúpulos e avançou sobre o corpo de uma companheira. Mais uma vez, a indignação nos moveu a defendê-la e a nos colocarmos frente a frente com o agressor inferindo palavras que denunciavam seu comportamento abusivo e machista. Nessa momento, o agressor acuado recebeu apoio de um grupo de homens.
Resguardados em seu machismo fizeram uso de pedaços de madeira para nos espantar e em movimentos intencionais acertaram várias outras companheiras. Um deles fugiu acuado e entrou no Shopping da Boa Vista.
Lançando frases como “esse área é minha”, “vão para trás”, “vão embora, suas putas, loucas”, deixaram claro seu ódio por nós, numa tentativa de determinar que a sua posição de poder não seriam escrachadas. A rua era deles, afirmavam, não só com as palavras, mas, principalmente, com o uso da força física. Não arredamos o pé, como não mais o faremos: nossos corpos são sagrados e ocuparemos todos os lugares.
Entre gritos e xingamentos, esse grupo de agressores munidos de paus, garrafas, canos, voltou de forma organizada e intencional para terminar o que haviam começado. A vontade deles era clara: com a desculpa de que haviam sido constrangidos por “homens e pelas bichas” e que “não batiam em mulher” tentaram afirmar que o problema não era com as mulheres e que voltaram para acertar as contas. Algumas de nós assumiram uma postura dialógica sob o desejo de evitar que a situação saísse mais ainda do controle e entrasse num campo ainda mais violento, impondo a todxs o desespero e o risco de morte. Mas a situação já havia saído do controle, pois eles, ao mesmo tempo em que diziam não querer “brigar”, inflamavam os ânimos, rebatendo os apontamentos machistas que gritávamos, nos chamando para a luta corporal. Nesse momento não houve mais como driblar o inevitável. Com o orgulho de machos feridos, eles voltaram para nos humilhar, nos reduzir a nada, e com desculpas falsas estavam sim dispostos ao pior e não sairiam de lá até nos “colocar no devido lugar”.
Muitas de nós estávamos exaustas e perplexas diante do que estava posto.Tentamos resistir e fomos brutalmente violentadas. Mulheres e homens foram agredidos de forma covarde. Vimos sangue, gritos, desespero e toda a sorte de emoções que se vivencia num momento de ataques e agressões.
Diante de tudo isso, afirmamos que nenhuma violência de gênero praticada contra nós ou nossas companheiras será aceita e que não nos silenciaremos diante do ocorrido. Tomaremos as devidas providências, tanto no que diz respeito a nossa defesa pessoal e mútua cotidiana, quanto ao que cabe a outras organizações sociais, no sentido de fazer cumprir o dever destas de zelar pelas suas responsabilidades em relação a nossa causa.
Nesse sentido, acreditamos que o SINTRACI (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Comércio Informal) deve se responsabilizar pelo ocorrido, uma vez que entre os envolvidos haviam pessoas sindicalizadas. Com isso, não queremos dizer que acolheremos resoluções sociais baseada em instrumentos criminalizantes. Não temos como objetivo criminalizar a articulação de ambulantes ou do SINTRACI, mas sim, a partir do ocorrido, abrir um diálogo para que, de movimento para movimento, e destes para a sociedade, a discussão de gênero, que é sempre insuficiente dentro de organizações e movimentos sociais, seja trabalhada com o devido reconhecimento e responsabilidade.
Assim, deixamos claro que entendemos enquanto opressão toda forma de violência estrutural e sistêmica consequente da forma de organização desigual em sociedade. Acreditamos na transversalidade da luta feminista com o anticapitalismo e o combate ao racismo, firmamos como essencial a construção de diálogo entre os movimentos sociais. É neste sentido que nós, do Coletivo Marcha das Vadias, reivindicamos que o SINTRACI reconheça a gravidade dos atos de violências ocorridos no último dia 30 durante a Marcha das Vadias e responsabilize os envolvidos pela ação de violência de gênero direta que resultou na brutalidade física imposta sobre nós.
Apontamos a urgência da inserção de debates sobre as questões de gênero e violência dentro das atividades do Sindicato, entendendo que, enquanto movimentos sociais, somos parceirxs na luta por uma cidade inclusiva para todas e todos.
Dessa maneira, também não toleraremos os momentos de violência transfóbica inicialmente relatados. Não iremos aceitar qualquer ação que negue xs transexuais enquanto sujeitxs de construção da sua identidade e subjetividade. Repudiamos o ocorrido no banheiro feminino, reiteramos e exigimos que a EMLURB e a Polícia Militar se posicionem publicamente sobre o ocorrido e promova capacitação dxs funcionárixs para que situações como a ocorrida no último dia 30 não voltem a acontecer.
Pela importância dos movimentos feministas na defesa da autonomia dos corpos das mulheres e em repúdio a todas as formas de opressão e violência, nós continuaremos em marcha.
Pela importância da organização coletiva e autonomia das mulheres nos processos de decisão, nós continuaremos em marcha.
Pela importância de ocuparmos as ruas, nós continuaremos em marcha!
Pela importância de nos mantermos unidas e fortes, nós continuaremos em marcha!
Quem não pode com as mulheres, não assanha o formigueiro!
#MarchaDasVadiasRecife2015
#JuntasSomosFortes
#MVR